sábado, 28 de setembro de 2013

O jardineiro que tinha fé - Clarissa Pinkola Estés






"A semente nova tem fé.
Ela se enraíza mais fundo nos lugares que estão mais vazios."

 
Descobri essa pequena obra-prima (Ed. Rocco, 92 págs.) em uma das estantes mais escondidas e de difícil acesso da biblioteca que frequento. E foi grande a minha surpresa! De Clarissa Pinkola Estés, só conhecia Mulheres que correm com os lobos (Ed. Rocco, 627 págs.), um livro espantoso e enriquecedor que revela uma psicologia feminina em seu estado mais puro, demonstrando através de mitos, contos de fadas e lendas do folclore, como se ligar novamente ao arquétipo da Mulher Selvagem, nome dado aos instintos naturais que foram, ao longo do tempo, domesticados e relegados às regiões mais pobres da psique.
A autora é poeta premiada, analista junguiana conceituada e como cantadora (contadora de velhas histórias) dirige o C.P. Estés Guadalupe Foundation, uma organização de direitos humanos que tem como uma das missões a transmissão de histórias reconfortantes, via rádio de ondas curtas, para lugares em conflito em todo o mundo.
É através deste dom, experiência profissional e de suas lembranças de infância que ela nos presenteia com um livro autobiográfico aparentemente, mas só aparentemente, simples e singelo. Na verdade, ela desnuda sua alma com sua narrativa  repleta de símbolos e significados que nos atingem em cheio.
Ainda criança, Clarissa foi acolhida e adotada por uma família de origem húngara. De pessoas refugiadas e machucadas em todos os sentidos pela Segunda Guerra Mundial, que chegaram ao norte rural dos Estados Unidos no final dos anos 40 e início dos anos 50, ela recebeu as primeiras lições de vida:
 
"Das dezenas de parentes refugiados que me criaram, aprendi das entranhas para fora, sobre a alma e a psique – seus ferimentos, seu luto e sua cura final. Como a única criança viva na família naquela época, aprendi não só sobre os aspectos mais sombrios e de maior capacidade de recuperação na vida, mas também sobre a proximidade constante da morte, em uma profundidade e em formas geralmente reservadas aos mais velhos."
 
E foi com os mais velhos que ela também aprendeu a antiga tradição denominada "fazer-história", uma prática de criar contos, poemas e outras obras, estimulada e transmitida de geração para geração.
Entre os "bobos dançarinos, as megeras sábias, os sábios resmungões e os quase santos" que compunham o grupo idoso da família, o tio Zovár ocupava um lugar de destaque. Depois de sobreviver aos horrores dos campos de trabalhos forçados, este camponês solitário e rústico, que amava profundamente a natureza, tentava sobreviver à dor das lembranças da guerra através das conversas, caminhadas, histórias e lágrimas derramadas na companhia dessa criança que também estava se reencontrando e descobrindo a força de regeneração da terra e da vida.
 
"Enquanto caminhávamos, titio matutava: 'Já ouvi pessoas perguntando onde fica o jardim do Éden. Ora! Qualquer lugar que se pise nesta terra é o jardim do Éden. Toda esta terra, por baixo dos trilhos de trens e das rodovias, da sua roupagem gasta, do seu entulho, de tudo isso, é o jardim de Deus – ainda com o frescor do dia em que foi criado.
É verdade que em muitos lugares o Éden está enterrado e esquecido, mas o jardim pode ser restaurado. Onde quer que haja terra sem uso, mal utilizada ou exausta, o Éden ainda está bem ali embaixo.'
Foi assim que aprendi que esta terra, da qual dependíamos para nossa alimentação, nosso ganha-pão, nosso descanso, para a oportunidade de ver a beleza, deveria ser tratada da mesma maneira que esperaríamos tratar os outros e a nós mesmos. O que quer que seja que aconteça a este campo, de algum modo, também acontece a nós."
 
Em uma época de sustos, perdas e lutos pessoais – e este momento chega para todos porque o ciclo da vida é permanente e inegociável – eu creio que, depois de ler este belo livro, soube aproveitar a oportunidade para lembrar de minhas próprias histórias e daquelas vividas por todos da minha família que já se foram. Histórias que me foram contadas e recontadas por eles e que, preservadas na minha memória e cuidadas com carinho e respeito, não só provam e resgatam o tempo de suas existências como confirmam, irrefutavelmente, a mim mesma tal como sou.
Sim, a semente tem fé porque acredita e busca os campos vazios e à espera para serem transformados novamente em jardins do Éden, mas também acaba descobrindo lugares escondidos e doloridos em nós para ressemear. Basta que estejamos com o coração aberto e o meu, felizmente, estava.
Recomendadíssimo!
 
 
 
 
Por Aline Andra

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário