quinta-feira, 18 de julho de 2013

A morte do gourmet - Muriel Barbery

 
 



Fiquei fã desta jovem escritora e filósofa, consagrada desde que seu livro “A elegância do ouriço” (Companhia das Letras, 2008 – 352 págs.), tornou-se um enorme sucesso. Tenho muita cautela com best-sellers. Desconfio bastante de uma classificação tão genérica e manipuladora que nivela, por exemplo, o fantástico “Cem anos de solidão” de Gabriel García Márquez que é no mínimo uma obra prima e o vulgar “50 tons de cinza” de E. L. James que é no máximo uma obra de mau gosto.
Sendo assim, resolvi conhecer Muriel Barbery através de seu primeiro romance “A morte do gourmet” (Companhia das Letras, 2000 – 124 págs.) e gostei tanto que o reli. Sentia que muito me escapara na primeira “degustação”, pois é uma história para ser imaginada e assimilada por todos os sentidos, um belo relato dos prazeres sensoriais (mas não somente) da boa mesa.
Pierre Arthens, o gourmet em questão, é um homem de temperamento complexo e instável, que foi guiado por quase toda a vida pela arrogância, egoísmo e volúpia que o tornaram tão temido quanto respeitado. Brilhante crítico gastronômico, famoso no mundo inteiro, aprecia e usufrui do poder de reinar nesse meio exigente e requintado, conferindo ou destruindo a excelência e a reputação dos maiores chefs da haute cuisine da França.
Com poucas horas de vida, na solidão de seu quarto, ciente do ressentimento que causou a tantas pessoas e consciente da sua indiferença, só lhe resta buscar na memória, revivendo momentos que, desde a infância, considera preciosos, aquela lembrança especial e mais importante de um sabor que o tenha marcado profundamente.
 
“Agarrei a eternidade na casca de minhas palavras e amanhã vou morrer. Vou morrer em quarenta e oito horas – a não ser que esteja morrendo há sessenta e oito anos, e que só hoje tenha me dignado notar. Seja como for, a sentença de Chabrot, o médico e amigo, chegou ontem: “Meu caro, restam-lhe quarenta e oito horas!”. Que ironia! Depois de decênios de comilança, de torrentes de vinho, bebidas alcoólicas de todo tipo, depois de uma vida na manteiga, no creme, no molho, na fritura, no excesso a toda hora sabiamente orquestrado, minuciosamente paparicado, meus mais fiéis lugares-tenentes, o Sr. Fígado e seu acólito, o Estômago, portam-se maravilhosamente bem e é meu coração que me abandona. Morro de insuficiência cardíaca. Que amargura também! Recriminei tanto os outros por não o terem em sua cozinha, em sua arte, que nunca pensei que talvez fosse a mim que ele fizesse falta, esse coração que me trai tão brutalmente, com um desprezo mal disfarçado, tal a rapidez com que se afiou o cutelo...
Vou morrer, mas não tem importância. Desde ontem, desde Chabrot, só uma coisa importa. Vou morrer e não consigo me lembrar de um sabor que trota em meu coração. Sei que esse sabor é a verdade primeira e última de toda a minha vida, que ele detém a chave de um coração que desde então silenciei. Sei que é um sabor de infância, ou de adolescência, uma iguaria original e maravilhosa antes de qualquer vocação crítica, antes de qualquer desejo e qualquer pretensão de expressar meu prazer de comer. Um sabor esquecido, acomodado no mais profundo de mim mesmo e que se revela no crepúsculo de minha vida como a única verdade que ali se tenha dito – ou feito. Procuro e não encontro.”
 
Muriel traça um perfil deste homem com seu acerto de contas e sua busca obsessiva através de suas emocionadas rememorações intercaladas com depoimentos de personagens que participaram da vida dele. Desde a esposa magoada e abnegada e os filhos fragilizados e rejeitados até o gato de estimação, todos tem algo a contar e estes curtos desabafos provocam comoção e reflexão pelo peso dos sentimentos contraditórios e pela impossibilidade de qualquer resgate.
Quanto à “Elegância do ouriço”, tive uma boa surpresa. Também gostei tanto que pretendo relê-lo, pois novamente tenho a sensação de que a escrita poética desta autora nunca é totalmente absorvida numa primeira leitura. Curiosamente, ela desenvolveu uma história que se passa no mesmo prédio luxuoso, no centro de Paris, com seus moradores ricos e fúteis. E na mesma linha de tempo em que Pierre Arthens está morrendo. Personagens que são apenas esboçados em “A morte do gourmet” tornam-se mais densos e bem elaborados como, por exemplo, Renée, a zeladora, com seu insuspeitado refinamento, ganhando plenitude e voz de protagonista. Ela, juntamente com a inteligente adolescente Paloma, que busca um sentido para a vida  e o Sr. Ozu, com sua paz e sabedoria, novo morador que chega para ocupar o apartamento da família Arthens, discorrem em pensamentos solitários ou compartilhados sobre filosofia, arte,  a vida e seus segredos, amores e ausências de forma arrebatadora. Li, em mais de uma resenha sobre o livro, que são personagens improváveis. Ora, se encontramos pessoas improváveis na vida real, por que não na ficção? Aliás, de que é feita a melhor ficção senão do inesperado?
De qualquer forma, para quem gosta de ler sobre a vida e suas improbabilidades, recomendo os dois romances e, com segurança, o que mais vier de Muriel Barbery.
 
 
 
Por Aline Andra
 
 

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