sábado, 8 de junho de 2013

Viagem no tempo: as gueixas - parte 2


 
 
 

A ficção e as diferenças culturais fizeram com que a ideia que o ocidente tem das gueixas seja distorcida, pouco correspondendo à realidade. Muitos acham que uma gueixa é apenas uma prostituta exótica, algo que choca os japoneses, que as consideram refinadas guardiãs das artes tradicionais.
Embora realmente durante muito tempo a atividade de gueixa tenha sido confundida com a de prostituta, a partir do séc. XVIII algumas medidas que oficializaram e regulamentaram a prostituição, acabaram diferenciando as duas profissões.
Bordéis oficiais foram concentrados em bairros cercados por muros e portões. O governo passou a ter controle, seja sob o caráter repressivo, seja sob o tributário, o que acabou por ser extremamente lucrativo e conveniente. Vários bordéis do Japão feudal apresentavam excelentes condições para receber clientes importantes. Eram limpos, espaçosos, agradáveis e alguns até tinham estrutura para promover banquetes; era mantendo tal atmosfera que as prostitutas procuravam atrair uma clientela seleta e para entretê-los também chamavam gueixas – homens e mulheres – para tocar instrumentos, dançar e cantar. Isto, eventualmente, causava um tipo de concorrência desleal e alguma confusão por parte de estrangeiros. Ocasionalmente algum cliente acabava se interessando por uma gueixa, criando constrangimento e rivalidade entre elas. A situação só se tornou definida em 1779, quando um decreto do governo reconheceu a profissão de gueixa.
Algumas regras que as gueixas passaram a ter que seguir eram semelhantes as das prostitutas, como a obrigatoriedade de viver nas okiyas (casas de gueixas). É importante observar que as prostitutas tinham prioridade em relação às gueixas na sociedade japonesa da época, cujos costumes sociais e religiosos eram bem mais tolerantes no que dizia respeito a sexo. A função e situação delas já estavam definidas há tempos e eram consideradas normais.
Assim, muitas das regras do kenban (cartório de registros e fiscalização) visavam limitar o que as gueixas podiam fazer.





 Como profissional, a gueixa tinha a obrigatoriedade de ser versada em muitas artes – a prostituta não; A prostituta vestia-se com os quimonos de tecidos mais brilhantes, estampados e extravagantes que tivesse; a gueixa foi proibida de usar tais quimonos e obrigada a ter um visual mais discreto; as prostitutas usavam até uma dúzia de kankashis (grandes espetos decorativos para o cabelo, considerados joias) e até três pentes de tartaruga na cabeça – a gueixa foi limitada a três kankashis e um pente; as gueixas foram proibidas de usar o obi amarrado na frente, característica das prostitutas e foram impedidas de ter qualquer envolvimento com os clientes destas.
 
 
 
 
As restrições do kenban moldaram não só a aparência, mas o que efetivamente a gueixa se tornou e é até hoje. Para terem a condição de artistas e serem diferenciadas, valorizadas e remuneradas condizentemente, elas passaram a dedicar enorme tempo ao estudo e treinamento em artes. Tornaram-se mestras da elegância, da beleza discreta e da sensualidade insinuada.
Formar uma clientela masculina cada vez mais seleta era o foco principal, mas o objetivo era apenas o entretenimento, como já foi dito anteriormente. Educadas e cultas, as gueixas tornavam a conversação mais agradável e os clientes conseguiam um tipo de relacionamento que não tinham com as prostitutas e nem mesmo com suas esposas. As gueixas descobriram seu público.
Em 1840, uma gueixa chamada Haizen decidiu aprender um pequeno ofício que era executado até então somente por homens: servir saquê. Haizen passou a fazer o mesmo, bem como fazer companhia aos convivas à mesa quando solicitada. Ela rapidamente tornou-se a gueixa mais requisitada de Kyoto e todas passaram a fazer o mesmo.
Durante os anos finais da Era Edo, as gueixas tiveram participação importante no movimento que restaurou o poder do Imperador e destituiu o xogunato Tokugawa. As casas de chá foram estrategicamente usadas para a organização e reuniões dos “conspiradores” com a conivência e a discrição delas.
Uma gueixa famosa, Kiharu Nakamura (1913-2004) teve uma participação ainda mais significativa. Em plena guerra, casou-se com um homem influente, foi mandada como espiã para a Índia pelo governo do Japão, ficando encarregada das mensagens secretas. Ao regressar, no final da guerra, encontrou seu país devastado e resolveu mudar-se para os Estados Unidos. Tornou-se professora de música e consultora de teatro e ópera e, inclusive, fez parte da ópera “Madame Butterfly”. Morreu aos 90 anos de idade.




Quando o Imperador retomou o trono em 1867, a colaboração das gueixas não foi esquecida. Na Era Meiji (1868-1912), promoveu-se uma rápida modernização e ocidentalização do Japão, com a implantação de ferrovias, indústrias, a adoção de vestimentas e hábitos ocidentais e a proibição de certos costumes que, apesar de arraigados há séculos na cultura japonesa, foram abolidos por constrangerem os ocidentais, como a poligamia e  o hábito de pintar os dentes de preto. As gueixas, entretanto, não só permaneceram intocadas, como foram promovidas pelo governo a símbolos da melhor e mais bela tradição japonesa.
 
 
 
 
 
 
 
 
Elas passaram, a partir desse período, a desfrutar de um fabuloso estilo de vida, tornando-se referência na moda e mantendo contato com políticos influentes e empresários bem sucedidos. Viviam com luxo, frequentavam festas, não faziam trabalhos domésticos, podiam ter vida sexual e não precisavam se casar. O karyukai ("a flor e o mundo do salgueiro"), o mundo da gueixa, era um espaço  dominado pelas mulheres numa sociedade machista.
 
 
 
 
Nas décadas de 1920 e 1930, o Japão conquistou uma grande prosperidade econômica. Políticos, industriais, banqueiros, empresários e a ascendente classe dos militares de alta patente, tornaram-se assíduos e generosos clientes de gueixas, formando uma elite de mecenas das artes respeitada pela sociedade japonesa. O status que a gueixa tinha e dava aos clientes, inspirava muitas mulheres a seguir a profissão, embora poucas efetivamente conseguissem entrar para este reservado mundo. Mesmo assim, em 1920, atingiram o auge com 80 mil gueixas registradas ainda nos moldes do kenban.
 
 
 
 
 
 
A demanda por gueixas era tão alta, que acabou gerando práticas inescrupulosas. Sempre lembradas do enorme investimento que representavam para a okiya, as maikos eram exploradas nos chamados “leilões de virgindade”. Ao completarem 16 anos, a okaasan contatava seus clientes e lhes oferecia a gueixa pela melhor oferta. Para elas, não havia chance de negar ou fugir. A deserção era vista pela sociedade como um ato de traição à okiya e até seus pais as delatavam ou mandavam de volta. Sabe-se que nos anos 30, a virgindade de uma maiko chegou ao valor recorde de 850 mil dólares. Mesmo criticados pela imprensa, os leilões continuaram sendo praticados até a 2ª Guerra Mundial. Com a ocupação americana, tal prática foi considerada abusiva e abolida.
Durante a Era Meiji, as gueixas estavam na vanguarda da moda japonesa. A partir de 1920, elas passaram a sentir o crescente aumento da ocidentalização dos costumes do país. Estrategicamente, decidiram não se modernizar e assumiram definitivamente o papel de praticantes do tradicional.
Nos anos 40, à medida que o Japão se envolvia na 2ª Guerra e começava a escassez de produtos básicos e alimentos, as gueixas continuaram mantendo seu conforto e estilo de vida, pois as okiyas mais prósperas mantinham como clientes, membros ligados ao governo e aos altos escalões militares. Isso contrastava com os sacrifícios impostos ao resto da população civil, conclamada ao esforço de guerra pela pátria e pelo Imperador. Então, em 1944, o governo determinou o fechamento de casas de chá, bares e restaurantes e impôs que todas as mulheres – inclusive as gueixas – fossem trabalhar nas fábricas. Esta situação durou até 1945, quando o governo de ocupação americano autorizou a reabertura das okiyas.
O período pós-guerra (1945-1952) trouxe uma série de novos desafios para as gueixas. A derrota do Japão causou a falência das instituições e de boa parte dos clientes importantes. Uma nova clientela teve que ser conquistada e elas procuraram os oficiais americanos. Se antes as gueixas desprezavam tudo que representava o Ocidente, agora elas procuravam aperfeiçoar o inglês e aprender músicas americanas. O choque de culturas foi inevitável e ocasionou novamente a errônea conclusão de que gueixas eram apenas prostitutas de aparência requintada. E as prostitutas, que até então tinham se mantido apartadas da comunidade das gueixas, passaram a reforçar a confusão para atrair mais clientes.
Uma nova fase de prosperidade se iniciou a partir de 1953, que culminou na atual condição do Japão, considerado uma das maiores economias do mundo. Cultivando tradições, a gueixa permitiu-se algumas modernidades, principalmente para desfazer a equivocada imagem que o ocidente tinha delas. Por exemplo, o governo passou a chamá-las para ciceronear e entreter personalidades  em visitas oficiais ao Japão.
 
 
 
 
 Mesmo assim, na prática, poucos ocidentais ou mesmo japoneses, tem efetivamente contato com uma gueixa. Em público, elas só aparecem em raras ocasiões, como no Jidai Matsuri (Festival das Eras) e na temporada de danças tradicionais, Kamogawa Odori (Danças do Rio Kamo) que ocorrem em outubro em Kyoto. Fora de tais situações, somente ocasionalmente são vistas a caminho das aulas de dança, música e canto ou a caminho de algum restaurante onde irão entreter algum empresário e seus convidados.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 A mudança de valores e hábitos na sociedade japonesa ameaçou a atividade da gueixa. Em curto período de tempo, as mulheres passaram a estudar, trabalhar e desenvolver carreiras bem sucedidas que antes não eram permitidas, inclusive, na política e nos negócios. Parte do fascínio da gueixa estava no fato delas serem as poucas mulheres japonesas com que os homens podiam se relacionar em nível de parceria. Hoje, com oportunidades mais justas, homens e mulheres disputam os mesmos espaços e cargos e procuram mais cumplicidade que subordinação. Tais fatores, embora positivos, reduziram o apelo que elas tinham. Poucas mulheres aspiram a esta profissão no séc. XXI. A população de gueixas verdadeiras no Japão ficou bastante reduzida desde o início do séc. XX. Atualmente há menos de mil registradas. Mesmo assim, quem consegue o status de gueixa, pode desenvolver a atividade por apenas alguns anos até entrar para a universidade ou casar.
As gueixas de hoje são mulheres modernas cuja carreira envolve recriar o passado com arte. As okiyas só aceitam meninas a partir de 17 anos e com o ensino médio obrigatório. Jovens um pouco mais maduras são apostas menos perigosas para a casa, principalmente, por diminuírem o risco de deserção. Para evitar os prejuízos de uma desistência e garantir a continuidade delas nas okiyas, as atuais okaasans procuram tratar bem suas maikos e geikos.
Embora ainda seja uma atividade lucrativa (em média paga-se de 500 a 1000 dólares por hora por gueixa e ela nunca vai sozinha. O comum é trabalharem em pares), os japoneses entendem que, atualmente, para se deixar entreter e apreciar o desempenho de uma gueixa, é necessário que o cliente tenha um certo grau de cultura e sofisticação. Não basta apenas ter dinheiro. A gueixa não é para qualquer um. Para os nostálgicos, o que importa é o que ela representa: a raridade, a exclusividade e a personificação daquilo que há de mais belo na alma do Japão. Sinal dos tempos.
 
 
 
 

“Uma gueixa é como uma flor, bela no seu próprio estilo e deve ser como um salgueiro, graciosa, flexível e forte.” ( Mineko Iwasaki)

 
 
 
 
 
Fontes das imagens e pesquisa: www.culturajaponesa.com.br
                                                        www.fragantica.com
 
 
 
 
 
 
Por Aline Andra
 
 

2 comentários:

  1. Não entendi muito bem, se as gueixas não se prostituíam, então como a virgindade delas era leiloada?

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